RASCUNHOS DA LILI
AMORES CONTEMPORÂNEOS: RELAÇÕES MODERNAS E AS ARMADILHAS DOS JOGOS DE AFETO NO SÉCULO XXI
Sempre que minhas amigas dividiam comigo suas desilusões amorosas, mensagens não respondidas, ficadas em vão, narrativas ingênuas em que caras em busca exclusivamente de prazer carnal, onde dias após o sexo mais incrível de suas vidas sumiam sem qualquer tipo de satisfação, voltando exatos quinze dias depois com um “oi sumida” seguido de explicações pós-sumiço com relatos do tipo “o trabalho tem tomado todo meu tempo” “meu cachorro estava com pneumonia” “tirei um tempo de folga longe do celular” e versões cada vez menos elaboradas de histórias mal contadas com desfechos emocionantes do tipo “senti tanto sua falta durante esse tempo que não consegui tirar você da cabeça”, me fizeram desacreditar que ainda exista, em tempos de flertes com dois cliques e dancinhas questionáveis, pessoas que saibam amar ou compartilhar qualquer tipo de afeto natural.
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Para ser mais modéstia e jogar às claras, não é tão difícil compreender. As pessoas estão tão focadas em seus mundos artificiais e tão imersos em vidas instáveis, que as relações a cada dia se enfraquecem, dependendo de um sistema de identificação impróprio sem qualquer prova de garantia ou teste de vida útil.
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Mas, veja bem, mesmo que possa parecer, esse texto não é uma crítica à modernidade de valores líquidos ou ao patriarcado fincado nas engrenagens da sociedade e passado de geração para geração, estabelecendo seu domínio ao longo dos séculos. Aqui vamos simplesmente esclarecer as provas de que os joguinhos de amor e as leis das relações modernas tiraram todo o brilho daquilo que deveria ser um caminho prazeroso entre a paixão e as trocas simultâneas e mútuas de afeto, e não uma estrada de pedras cheias de ciladas, constrangimentos e armadilhas para o coração.
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Eu estava no meu terceiro desesperador-desesperançoso-descontente-desconexo-desvalorizado (permita-me usar todos os morfemas "des" imagináveis) como dizem os mais atuais, date do ano, e minhas expectativas quanto a encontrar alguém que perdurasse pelo menos cinco semanas consecutivas de mensagens rotineiras e encontros casuais, se esvaia a cada “deixa rolar”, o que sempre sucedia o sumiço gradativo de um jovem rapaz que em meados dos dias que antecederam a nossa primeira (e em algumas vezes) única transa, se mostrara muito interessado em minha vida pessoal, passando de um “me avise quando chegar em casa, me preocupo muito com você” para mensagens visualizadas e só respondidas após uma humilhação desempenhada, capazes de jogar no lixo da humanidade qualquer resquício de dignidade e amor-próprio.
Avisos eram dados!
Eu era cercada de amigas passando pelas mesmas dificuldades amorosas.
Uma colega de trabalho chamada Sara, um exemplo de autossuficiência no meu círculo de referências femininas, estava há mais de dois meses lutando contra as armadilhas de seu coração.
Seu ficante
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Diz-se da moça ou rapaz que mantém um relacionamento super liberal e sem qualquer compromisso com uma pessoa do sexo oposto.
, tão necessitado de uma terapia intensiva para curar sua forte tendência a psicopatia, vivia dando sinais irregulares, enchendo a pobre coitada de dúvidas e receios, fazendo brotar na mulher outrora tão vívida e desapegada, uma ansiedade e depressão capaz de fazê-la ficar horas com os olhos pregados na tela do celular, aguardando qualquer sinal do indivíduo demonstrando que ainda, mesmo que ela não estivesse mais tão interessante como no início ou não preenchesse suas redes sociais com atualizações interessantes sobre sua vida, mantinha o interesse.
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Bastava um toque, uma ligação, uma curtida ou um simples comentário, e mulheres inteligentes e bem-sucedidas, como Sara, eram desmontadas a ponto de se entregar em bandejas para homens desinteressados em suas próprias vidas, tampouco interessados em suprimir as altas doses de expectativas criadas por elas mesmas.
Em um dia de intensa reflexão, depois de não ter conseguido entrar em contato com meu ex-namorado (que há duas semanas havia desaparecido misteriosamente), me deparei com a seguinte questão: Qual é a expectativa que devemos depositar nos homens do século XXI? Esperar que desempenhem os termos coloquiais tão discutidos e estudados por nós com afinco para reduzir o número de vítimas? Os jogos de amor e sedução, as suas indecisões plantadas em nossa mente? As migalhas de afeto? Os sumiços repentinos? Love Bombing? Ghosting?
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Love bombing ou bombardeio de amor é uma tentativa de influenciar uma pessoa por meio de demonstrações de atenção e afeto. Pode ser usado de diferentes maneiras e para fins positivos ou negativos. Psicólogos identificaram o love bombing como uma possível parte de um ciclo de abuso e alertaram contra isso.
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Ghosting é um termo coloquial usado para designar o término repentino de um relacionamento com uma pessoa sem quaisquer explicações ou aviso e, posteriormente, ignorar quaisquer tentativas de contato ou comunicação feita por essa pessoa.
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Numa conversa de poucos minutos com minha prima Vana, deparei-me com a seguinte reflexão de sua parte: “Presumo que relacionar-se hoje em dia seja abdicar, a cada tentativa de aceitação, da sua própria individualidade. Aí é onde mora o perigo. Nos apaixonamos, prescindimos de gostos pessoais, lugares e até mesmo pessoas. Fazemos de um ser humano, com todas as falhas e defeitos, o centro de nosso universo. Seguimos à risca todas as pegadas deixadas até o caminho da sedução final, que é quando o relacionamento progride para algo mais sério, e quando acaba, quando toda a ilusão criada de maneira unilateral se corrompe, perdemos a nossa identidade, não nos encontramos mais e o que sobra de toda essa experiência são dores de mentiras mantidas por pessoas sem qualquer responsabilidade afetiva que na primeira oportunidade abandona o parceiro que se criou exatamente de uma maneira perfeita para agradá-lo. Além disso, acredito que jogos de amor só servem para causar traumas, inseguranças e dias extensos de terapia.”
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Está certo que os homens estão cada vez mais predispostos a desempenhar jogos de amor nos estágios iniciais de um relacionamento e até mesmo em um relacionamento já estabelecido, mas ainda assim obtemos 1% de culpa nessa confusão toda.
Procuramos sinais, estudamos os seus joguinhos com tremenda dedicação, aceitamos fazer parte de toda essa má criação de desafeto, e o que resulta disso são pessoas cada vez mais exaustas e traumatizadas a cada relacionamento, encontrar alguém compatível e decente nesse mundo pós-modernidade está cada vez mais, eu diria que, em uma zona extremamente perigosa.
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Eu não sei até onde eu ou você fazemos parte disso e não podemos decidir parar, as redes sociais e toda essa modernidade está cada dia mais reafirmando e acolhendo um mundo de relações vazias e sem significado.
Há quem diga que a liberdade amorosa conquistada através dos séculos esteja criando pessoas cada vez menos dispostas e mais rigorosas a respeito de relações conjugais.
Há quem diga que devemos esquecer todo aquele conto de fadas de cartas longínquas e poemas trocados, pois na era da tecnologia não existe mais a necessidade de tamanha dedicação, simples mensagens de textos e interações nos ambientes virtuais são capazes de criar laços de intimidade e conexões duradouras.
E há aqueles que defendem, com sensata certeza, que os relacionamentos atuais não passam de vivências maçantes com prazo de validade, pois não há nada mais real que assegure uma paixão e garanta felicidade. Casais não estão mais dispostos a lutar para sustentar relações logo em suas primeiras falhas.
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“Nós mantemos o amor enquanto ele traz satisfação, depois trocamos para outro que traz mais satisfação ainda”.
– Zygmunt Bauman
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A normalidade passa a ser a impermanência, a ambiguidade veio para substituir a certeza de algo pouco complexo, o intuito agora, no mundo das relações conjugais é que vença o melhor!
Mas nesse jogo, claramente, não há ganhadores.
Game Over!
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(Este é um texto de reflexão. Os personagens e relatos citados são fictícios e de livre e espontânea invenção da autora.)
SOBRE A AUTORA
Nascida Aline Cavalcante Sousa, decidiu adotar o pseudônimo de Lili.C.S em sua carreira literária, buscando um nome mais sofisticado e inclusivo. Sua curiosidade e imaginação a levaram a começar a criar suas próprias histórias aos oito anos de idade, quando ganhou um concurso de poesia em sua escola. Esse evento marcou o início de uma jornada literária que ela abraçaria com entusiasmo. Estudante de Letras, ela mergulha nas páginas de livros, encontrando refúgio, inspiração e um universo de possibilidades. Hoje vive em uma cidade pequena no interior do Pará, lugar onde nutre sonhos grandes e desejos (quase) impossíveis, como o de figurar no topo da lista de best-sellers do New York Times.
